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Salvem os peixes de água doce

Salvem os peixes de água doce: desmatamento, hidrelétricas, poluição e mudanças climáticas põem em risco megadiversidade de rios, lagos e poças. Peixes de água doce são os mais ameaçados do Brasil.

Salvem os peixes de água doce

21/7/2021 :: Por Sarah Schmidt/Fapesp

Em dezembro de 2020, enquanto dirigia pela rodovia CE-040, que corta o município de Aquiraz, no litoral cearense, o biólogo Telton Ramos, da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), notou que uma poça temporária de cerca de 400 metros quadrados (m²) na várzea do rio Pacoti era aterrada por obras em andamento.

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Floresta Amazônica. Foto: Tamara Saré/Agência Pará

Preocupado, ele parou o carro e fez fotografias e vídeos do que deve ter destruído parte do único hábitat conhecido de uma espécie de peixe, Hypsolebias longignatus, que atinge no máximo 4 centímetros (cm) de comprimento e cujo macho ostenta listras e manchas azuis nas barbatanas.

Conhecidos como peixes-anuais ou peixes-das-nuvens, porque parecem chegar com as chuvas, os indivíduos dessa família, dos rivulídeos, têm um ciclo de vida curioso. Os peixes vivem por no máximo 9 meses em pequenas lagoas ou poças temporárias e morrem durante a seca, mas deixam ovos enterrados que, quando a chuva cai, eclodem e povoam o lugar novamente. “Aterrando uma poça, pode-se destruir uma população inteira e levar a espécie à extinção”, alerta Ramos.

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Novos peixes descobertos no Rio São Francisco
Quase extinta?

Com o material que juntou, ele publicou uma denúncia no perfil Peixes da Caatinga, que mantém no Instagram com outros pesquisadores. O caso repercutiu em jornais locais e as obras de duplicação da rodovia e a construção de um prédio comercial foram embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O órgão exigiu que as empresas envolvidas façam estudos de impacto ambiental. “Estamos acompanhando de perto”, comenta o biólogo, que integra o Plano de Ação Nacional para a Conservação (PAN) dos Peixes Rivulídeos. No começo de junho uma equipe contratada pelos responsáveis pela obra encontrou a espécie em pontos não aterrados da poça, que lembra um brejo. Para alívio dos pesquisadores, ela não foi extinta, mas é preciso aguardar o término dos estudos para mensurar o impacto causado.

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“Os peixes esquecidos do mundo”

ictiologia. Medição de peixe em laboratório

Por viverem em ambientes intermitentes, os rivulídeos são a família de peixes mais ameaçada do Brasil. Das 350 espécies descritas nos seis biomas terrestres brasileiros, 125 estão em uma das categorias de ameaça do Livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção, publicado em 2018 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

De acordo com a publicação, 76% (312) de todas as 409 espécies de peixes ameaçadas no país são classificadas como continentais: vivem na água doce. Hoje esse número pode ser ainda maior, já que os dados usados na publicação são de avaliações de risco feitas entre 2011 e 2014.

Em água doce vivem “Os peixes esquecidos do mundo”, segundo título-alerta do relatório da organização de conservação global WWF publicado em fevereiro de 2020. Elaborado pela entidade e por outras 15 instituições não governamentais, o documento chama a atenção para o fato de que a maioria (51%) das espécies de peixes descritas no mundo (18.075 de 35.768) habita os rios, lagos e demais ambientes de água doce. Mesmo assim, segundo o documento, desde 1970 as populações de peixes migradores foram reduzidas em 76% e as de grandes peixes – aqueles que pesam mais de 30 quilogramas (kg) – em 94%.

Salvem os peixes de água doce - tambaqui
O tambaqui (Colossoma macropomum). duramente impactado pela pesca.

Das 10.336 espécies de peixes continentais do mundo avaliadas, 30% correm risco de extinção conforme a lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), destaca o relatório.

Pequenos peixes são os mais ameaçados

O documento deixa o alerta: apesar dos esforços mundiais para combater a perda de biodiversidade aquática, os peixes de água doce parecem ficar à margem dos programas de conservação de forma global e são ameaçados por poluição, pesca predatória ou empreendimentos para geração de energia elétrica.

Ictiologia. Sacramento splittail

“Temos uma grande diversidade de peixes nesse quase 1% que compõe a água doce disponível na superfície do planeta. E é justamente essa água que usamos para tudo, principalmente aqui no Brasil”, ressalta a bióloga Carla Polaz, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Aquática Continental (Cepta) do ICMBio em Pirassununga, interior paulista. Irrigação, indústria e abastecimento urbano são os principais usos no país que tem a maior reserva de água doce do mundo – cerca de 12do total. A falta de saneamento básico é outro problema, lembra ela, já que o esgoto não tratado é jogado diretamente nos rios na maior parte do país.

No Brasil, os peixes pequenos, como os rivulídeos, são os mais afetados. “Hoje, 81% das espécies ameaçadas de peixes de água doce têm até 15 centímetros de comprimento”, alerta Polaz, que publicou um artigo de revisão sobre os peixes de pequeno porte no primeiro trimestre de 2020 na revista científica Biota Neotropica.

Pirarucu, o peixe gigante
leia: Pirarucu 

“Eles são pouco conhecidos e, por isso, esquecidos”, comenta. “Boa parte deles não é usada para alimentação, tirando alguns lambaris vendidos fritos em praias.” O estudo propõe alguns pontos que explicariam o problema: os ambientes aquáticos menores, onde vive a maior parte desses peixes, são mais vulneráveis do que os rios e lagos grandes, habitados pela maioria dos peixes de médio e grande porte. Nesses últimos estão os representantes de alto valor comercial, como o dourado e o pirarucu.

Fonte: Peixes de água doce, os mais ameaçados do Brasil/Revista Fapesp  CC BY-ND 4.0

Artigos científicos:

CAMPOS, D. F. et alClimate vulnerability of South American freshwater fish: Thermal tolerance and acclimationJournal of Experimental Zoology Part A: Ecological and Integrative Physiology. 10 mar. 2021.
CAMPOS-SILVA, J. V. et. alPopulation recovery, seasonal site fidelity, and daily activity of pirarucu (Arapaima spp.) in an Amazonian floodplain mosaicFreshwater Biology, v. 64, n. 7, p. 1255-64. 10 abr. 2019.

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