bocadomangue Mario Moscatelli

Secando gelo no inferno

Toda vez que tenho a oportunidade de sobrevoar a zona costeira compreendida entre as baías de Guanabara e Ilha Grande, minha bondosa esposa sabe que na certa terá marido deprimido na volta.

A visão na baía de Guanabara alterna momentos de grande beleza quando do alto, nos deparamos com o colossal manguezal da APA de Guapimirim, uma fiel amostra do que deveria ser o primitivo litoral dessa que foi uma das mais belas baías de todo o mundo, sem qualquer exagero. No entanto em suas bordas, o processo de ocupação desordenado principalmente nos municípios de Duque de Caxias e São Gonçalo, avançam sem parar na cara de quem quiser ver e também dos que não quiserem.

Enquanto isso em três áreas de manguezais degradados, junto com um grupo de pouco mais de 15 homens trabalhamos na recuperação de aproximadamente 35 hectares que vistos de baixo parecem áreas gigantescas, mas que do alto demonstram que ainda que significativos, ainda são muito pouco diante do estrago que fizemos e continuamos fazendo com esse ecossistema. O sentimento é que claramente estamos secando gelo. Enquanto recuperamos na frente, por trás os aterros engolem os manguezais numa velocidade muito maior. E para segurar essa moçada? Vocês encarariam essa turma que aterra os manguezais? Vocês apelariam para quem? Sempre é bom lembrar que as regiões de manguezal são protegidas integralmente por tantos dispositivos legais que nem eu mais sei quantos são! Com certeza precisamos de planos práticos para proteger o que sobrou bem como gerenciar os recursos naturais ainda disponíveis de serem usados.

É interessante a situação na qual trabalhamos na foz do rio Sarapuí, onde há cinco anos atrás, a área de onze hectares que hoje mostra-se em franca recuperação, era um verdadeiro depósito de lixo e muitas vezes com a presença de corpos mutilados. Sim, corpos mutilados que descem pelos rios Sarapuí e Iguaçú e "desovam" nas áreas de manguezais sendo usados como alimento por variada fauna. Lixo, corpos mutilados e esgoto e nesse enredo que por cinco anos temos trabalhado e conseguido êxitos, principalmente quando instalamos um sistema de palafitas que facilitou nossos deslocamentos, como da cerca que tem impedido a entrada de "resíduos" de todos dos tipos nas áreas de plantio.

Final feliz? Nada feito! Agora que a área está progressivamente sendo recuperada, uma das classes que mais se beneficiariam de nosso trabalho, isto é, dos catadores de caranguejo, tem sido uma das principais fontes de vandalismo nas áreas de plantio. Palafitas e cercas arrancadas, mudas cortadas e captura com laço acabando com a população dos uças. Se já tentamos conversar? Algumas vezes, mas na maioria rechaçada por uma mistura de revolta e ameaças veladas. Enfim, confesso que lidar com gente não é a minha melhor especialidade, independente do nível cultural, só que tem hora que parece que por mais que você se esforce para melhorar diretamente a qualidade ambiental e consequentemente a qualidade de vida das pessoas, há um tipo de lado negro da força no qual todos estamos quase que inteiramente submersos e que por mais que você se esforce, parece que no final você acaba morrendo na praia.

Ao passar pela baixada de Jacarepaguá o caos que impera no sistema lagunar é tão absurdo e profundo, desconectado de qualquer sinal que nossa sociedade tenha entendido que não há desenvolvimento econômico sem equilíbrio ambiental. Coroada em menos de quarenta anos de ocupação urbana mais intensa como a segunda maior privada da cidade do Rio de Janeiro, suplantada, apenas pela baía de Guanabara, o mal cheiro provocado pelo gás sulfídrico e metano emanado do que sobrou da lagoa da Tijuca, dá para sentir lá de cima, enquanto vemos ao largo do canal da Joatinga como o final de um gigantesco intestino grosso milhares de metros cúbicos de esgoto e algas tóxicas sendo vazadas em direção à "praia do Popô".

A baía de Sepetiba é uma continuação do quadro de degradação das demais áreas anteriores, esgoto, sedimento, metal pesado adicionado de pesca por arrastões próximos a foz do rio São Francisco.

Secando gelo no inferno

Com certeza ao chegarmos na baía da Ilha Grande a paisagem se modifica por completo a não ser pelo processo de favelização que inicia um claro processo de metástase no eixo da rodovia Rio-Santos.

O manguezal da Japuíba, que em 1989 ajudei a demarcá-lo, no último sobrevôo esta área tornou-se quase que uma verruga cercada pelo crescimento urbano. O mesmo que toma conta das encostas. Lembro que em 1978, ainda adolescente, várias das encostas que cercavam o anfiteatro de Angra dos Reis, ainda continuavam com alguma cobertura vegetal. Hoje, existe não só a Sapinhatuba 1, como a 2 e a 3 e pode esperar que existiram muitas além dessa, visto que independente da bandeira partidária, pouquíssimos suicidas políticos tentaram reverter esse quadro. A lógica que gera a metástase no tecido urbano seja na região metropolitana como em qualquer outra área, tem claras origens no processo político, na criação dos currais eleitorais, onde políticos patológicos se perpetuam no poder às custas da degradação e da não resolução das causas da degradação.

Outros manguezais definham como os da Gamboa e Jabaquara, enquanto outros renascem lentamente como o do Cansado, que após quase trinta anos, recupera-se naturalmente da ação nefasta da especulação imobiliária, mas que hoje corre o perigo da favelização.

Mas afinal à quem pedir ajuda? Sinceramente eu não sei, a não ser continuar recuperando, ou tentando recuperar, quando alguma "auturidade" deixa, enquanto muito se fala e se exige em ambientes que nem de perto lembram o caos no qual trabalhamos, fora daquela realidade, de salto alto, com ar condicionado.

Outra importante tarefa é continuar informando o que acontece lá no campo para quem se interessar, onde a realidade transforma qualquer filme de terror de última categoria em desenho para criança.

Enquanto não encararmos de fato os manguezais como indústrias de qualidade de vida, biodiversidade e filtros e os gerenciarmos com a técnica que merecem, continuaremos com a retórica de sua importância como berçários, etc., sem notar ou não querendo notar que os berçários estão queimando e sendo arrasados!

Finalmente seria importante que para alterarmos esse estado de degradação ambiental, é que nossos esforços se intensificassem mais em coisas práticas e construtivas, buscando parceiros e recursos que de fato alterassem esse círculo vicioso de só reclamarmos sem nada fazer. Evitemos atacar terceiros pelas costas, ou difamarmos apenas por não concordarmos com determinadas opiniões. No Brasil infelizmente fazer algum tipo de sucesso profissional, ou ter a coragem de expor suas opiniões publicamente e exercer sua cidadania plenamente, é praticamente um crime inafiançável diante dos omissos, dos fracos, incompetentes e coniventes, sempre protegidos pelo corporativismo patológico ou pela célebre covardia. Percamos menos tempo com os outros e tentemos cada um à sua maneira melhorarmos esse "cavalo de Tróia" que as gerações anteriores nos deixaram de presente.

Esclareço que este último parágrafo teve endereço certo.
Por enquanto é isso, menos fofoca e mais trabalho gente!

MARIO MOSCATELLI - Biólogo - moscatelli@biologo.com.br

.

imprimir
imprimir a página
artigo anterior

meio ambiente | ongs | universidades | página inicial |

A opinião dos colunistas é de inteira responsabilidade dos mesmos