bocadomangue Mario Moscatelli

FELIZ ANO VELHO

Uma análise do histórico de degradação ambiental da laguna Rodrigo de Freitas, do início de sua ocupação até a recente briga entre a Prefeitura e o Governo do Estado, onde cada uma das esferas nega a paternidade do filho feio que bóia nas águas da Lagoa, refletem bem os motivos que conduzem a região metropolitana do Rio de Janeiro rapidamente em direção ao caos ambiental.
-Um breve histórico de degradação ambiental até 1986.
Ao menos dois outros nomes denominaram a atual laguna Rodrigo de Freitas. A primeira como Ipanema com seu significado associado à água imprestável e a segunda como Sacopenapã significando lagoa dos Socós, nomes sempre associados às características ambientais locais.

A laguna Rodrigo de Freitas desde o início de sua ocupação gerou interessantes descrições, atualmente quase que inacreditáveis à seu respeito. No início do século XIX, John Luccock afirma que a laguna " é funda, de água geralmente doce e notavelmente cristalina.... em seu leito abundam os mariscos e outras conchas pequenas. É sujeita por vezes a fortes rajadas de vento e quando ocasionalmente o mar transpõe a restinga, muitos peixes de água doce padecem".


Porém vários problemas de natureza ambiental sempre estiveram presentes nessa laguna, desde o início de sua ocupação até os dias de hoje, gerando as mais variadas proposições para o seu solucionamento, de sua salinização até mesmo o seu completo aterro como sugerido pelo Dr. Saturnino Nicolao Cardozo em seu livro "Saneamento da Cidade do Rio de Janeiro" de 1905 (Leonardos, 1974).

Mas isso vem de longe, visto que dentro de uma ótica onde questões ambientais são um empecilho para os chamados desenvolvimentistas míopes e assistencialistas defensores do lema "Só Jesus Salva", o sucateamento das estruturas que representam a política e a proteção dos recursos naturais, mostra-se uma prioridade em seus inconfessáveis objetivos particulares imediatistas. Tal atitude acaba gerando monstros ambientalmente inúteis e poços sem fundo com os recursos públicos perdidos tal como vem se materializando há anos, no Programa de "Despoluição" da Baía de Guanabara.

Violentas enchentes nos terrenos perilagunares, mortandades de peixes, eliminação de gases (metano e gás sulfídrico), proliferação de vetores e a existência segundo Frederico José de Sampayo (1842) de "águas estagnadas... causando males incalculáveis aos moradores" tornaram a laguna Rodrigo de Freitas um constante problema ambiental da cidade do Rio de Janeiro, sempre mal resolvido administrativamente.

De 1887 até os dias de hoje, inúmeras intervenções ocorreram tanto viabilizando o processo de ocupação como no sentido de tentar resolver e muitas vezes agravando os problemas ambientais locais, interferindo diretamente na salinidade e qualidade das águas, na dimensão original da laguna e conseqüentemente em toda a sua biota.

A área original da laguna foi progressivamente sendo reduzida em função das propostas de saneamento e principalmente visando à obtenção de novos terrenos para o crescimento urbano. Em 1922 sugere-se o aterro das margens alagadiças, representando a supressão de uma área de1.345.800 metros quadrados, além da criação das ilhas artificiais da Draga e dos Caiçaras.
Em conseqüência da transação de permuta de terrenos visando a edificação do estádio do Maracanã, "foi executado um aterro de cerca 150.000 metros quadrados na Lagoa...".(Revista Municipal de Engenharia, 1986). Acompanhando a tendência dos aterros, em 15 de julho de 1976 o Jornal do Brasil destacava que "Lagoa perde mais 35 mil metros quadrados com cais que começa a ficar pronto".
Visando dar uma clara idéia da dimensão dos terrenos de domínio da primitiva superfície da laguna Rodrigo de Freitas suprimidos pelo processo de urbanização, salienta-se que " diversos prédios existentes em torno da Lagoa foram construídos sobre a área aterrada, como: Hospital Miguel Couto, Hipódromo da Gávea - Jóquei Clube Brasileiro, Igreja Santa Margarida Maria, Sociedade Hípica Brasileira, Clube Monte Líbano, Associação Atlética Banco do Brasil, Clube de Regatas do Flamengo, Clube Militar, Clube Caiçara (ilha artificial), Clube Piraquê (ilha artificial) e os que se situam na área anteriormente ocupada pela Favela do Pinto"(Revista Municipal de Engenharia, 1986).

Enfim, pode-se ter uma idéia definitiva da alteração espacial da laguna Rodrigo de Freitas quando compara-se a cada época analisada a redução da área correspondente.
Ano - Área aproximada do Espelho Dágua (milhões m2 )*
1809 - 4,48
1930 - 4,10
1965 - 3,20
1975 -2,40
P.A 9548 - 2,30
*Revista Municipal de Engenharia vol. XL (1986).
Segundo a Revista Municipal de Engenharia (1986), também a profundidade da laguna Rodrigo de Freitas sofreu diretamente com o processo de urbanização que tanto alterou fisicamente suas dimensões e sua bacia hidrográfica, tendo sua profundidade média passado dos 5 metros em 1880 para 2.80 em 1975, representando um assoreamento de 10 cm/ano.
A questão do saneamento básico na cidade do Rio de Janeiro foi e continua sendo uma das maiores evidências do descompasso entre o crescimento urbano e as políticas de infra-estrutura que nunca acompanham a velocidade do processo de urbanização. O caso da laguna Rodrigo de Freitas espelha esse descompasso e o descaso político-administrativo.
Em 1939, após as inúmeras propostas de gerenciamento e das intervenções já efetuadas desde 1887, no "Relatório sobre a situação da Lagoa Rodrigo de Freitas sob o ponto de vista biológico" de Aragão, Santos e Oliveira, chamados para dar solução ao crescimento descontrolado de vegetais aquáticos, os autores atestavam " como rapidamente vimos, a desorganização dos serviços dos canais e comportas determinou uma grande diminuição da quantidade de sal dissolvido nas águas da lagoa...... permitindo o excessivo desenvolvimento dos já referidos Characeas e Potamogenaceas" (Memórias do Instituo Oswaldo Cruz, 1939). Também a falta de manutenção dos equipamentos mecânicos envolvidos no gerenciamento hidráulica da laguna era uma característica da situação analisada em 1939.

Em outro relatório datado de 1961, intitulado " O problema Sanitário da Lagoa Rodrigo de Freitas" do engenheiro Enaldo Cravo Peixoto, afirma-se que em 1953, num período de intensa urbanização de todos os bairros perilagunares, a Superintendência de Urbanização e Saneamento ao assumir a direção de serviços de esgotos, encontrou ".... as cinco estações de bombeamento da antiga Inspetoria construídas nas margens da Lagoa, funcionando apenas até as 4 horas da tarde e extravasando, sistematicamente, esgotos para a Lagoa Rodrigo de Freitas". Some-se a isso, ainda em 1953, "a elevatória chave do sistema de esgotos da antiga Cia. City, construída em 1896, já se apresentava totalmente obsoleta..." (Peixoto, 1961).
Outro importante ponto indicado por esse mesmo relatório, além das precárias condições do sistema de saneamento "oficial", era segundo dados do IBGE (1961), as 15 favelas (Praia do Pinto, Parque Proletário da Gávea, Macedo Sobrinho, Ilha das Dragas, Parque Cidade, Morro do Martelo, Getúlio Vargas, Bartolomeu Mitre, Vila Floresta, Major Rubens Vaz, Fundos do Jóquei Clube, Arthur Araripe, Monte Carlo, Santa Marinha e Catacumba), com um total de 26.644 habitantes que despejavam seu esgoto direta ou indiretamente nas águas da laguna.

Apesar das inúmeras autoridades nas mais variadas situações e épocas nos momentos de exposição sob o olhar inquisidor da sociedade se defenderem sob a argumentação que as mortandades de peixes já ocorriam mesmo antes do processo de urbanização, os mesmos administradores públicos sempre se esqueceram de informar quais as causas que geravam na fase de pré-urbanização as mortandades, sua freqüência bem como o volume de peixes mortos.

Sem dúvida, após inúmeros trabalhos desenvolvidos seja por pesquisadores estrangeiros como brasileiros, chega-se a conclusão que as características ambientais pré-urbanização da laguna sempre apresentaram um equilibro delicado, seja pelo grande volume de matéria orgânica trazida pela sua bacia hidrográfica proveniente do maciço da Tijuca lançado em suas águas como pelo contato esporádico com o mar, origem de processos biogeoquímicos e de estratificação físico-química que agiam como potentes tensores. Também é muito claro que a partir da urbanização, os tensores naturais foram amplificados, gerando como resposta mais evidente as freqüentes mortanda
des de peixes que praticamente estigmatizaram a laguna Rodrigo de Freitas como um depósito de peixes mortos por mais de cinco décadas.

Inúmeras foram às mortandades que ocorreram repetidamente, sendo a partir de 1944 que as mesmas se tornaram cada vez mais freqüentes e no fim da década de 60, atingindo números progressivamente também maiores, quando morriam de 200 a 300 toneladas de peixes por ocorrência (Jornal do Brasil, 1976). Salienta-se que em outubro de 1971, o Departamento de Limpeza Urbana, retirou cerca de 500 toneladas de peixes mortos (Leonardos, 1974).
Neste breve histórico relato, fica claro que o equilíbrio ambiental natural já relativamente vulnerável e instável pelas próprias condições ambientais características da laguna, tornaram-se completamente desequilibradas com a inserção dos tensores de natureza humana que agiram na amplificação do poder dos tensores originais.
-Um breve histórico de degradação localizada entre 1986 e 1999.

A partir do tombamento legal do espelho dágua ocorrido em 1986 e a execução no final da década de oitenta de um conjunto de obras que estancaram o lançamento generalizado de esgoto nas águas da laguna Rodrigo de Freitas, foi iniciado um período de franca recuperação ambiental do ecossistema e de sua redescoberta por parte da população, transformando a região como uma das mais importantes alternativas de lazer na cidade do Rio de Janeiro como se verifica na manchete do Jornal O Globo: "Lagoa volta ao páreo de cartão postal do Rio" de 30/06/91. Salienta-se também o início do gerenciamento efetuado pelo autor desse artigo da vegetação perilagunar com a recuperação das formações de manguezais, eliminadas pelos consecutivos aterros que em menos de uma década produziram seus efeitos no incremento da biodiversidade principalmente de crustáceos e aves.
No entanto mesmo nesse período de progressiva recuperação ambiental, antigos problemas e suas já conhecidas conseqüências voltavam a ocorrer esporadicamente nas águas da laguna, como o verificado em 02/93 quando aproximadamente 210 toneladas de peixes morreram em decorrência da falta de oxigênio ou como em 02/92 e 04/93 quando se verificava o lançamento de resíduos oleosos através das galerias de águas pluviais situadas em frente do Parque da Catacumba e Parque dos Patins.
Infelizmente o que inicialmente era esporádico tornou-se progressivamente mais presente e os lançamentos de esgoto mais uma vez no fim da década de noventa, voltavam a contaminar e desequilibrar o delicado ecossistema local.
-Um breve histórico de degradação localizada entre 1999 e 2003.

Apesar das inúmeras denúncias efetuadas seja por meio de todos os tipos de mídia e às diversas esferas do poder público, não tardaram a aparecer de maneira intensa as conseqüências do descaso ambiental com o qual as autoridades trataram de não resolver os problemas insistentemente denunciados.

Em dezembro de 1999, morriam 4 toneladas de peixes junto ao Parque do Cantagalo, o que gera das autoridades estaduais uma reação pirotécnica, que apesar de devidamente informadas da gravidade da situação, de fato nada fizeram para reverter o processo que iria a fevereiro de 2000 conduzir a morte de 140 toneladas de peixes e paralisar ambientalmente e economicamente a vida da laguna.
A mortandade e suas causas por sua vez geram um inicial pequeno movimento encabeçado pela ong SER CONSCIENTE que em fevereiro faz o primeiro abraço à Lagoa e que por sua vez é o estopim do grande abraço que ocorre no mês de março, onde milhares de cariocas demonstram das mais variadas formas sua insatisfação diante da falta de comando e exigem providências no que diz respeito à melhoria das condições ambientais da laguna Rodrigo de Freitas.
Deste movimento surgiram uma série de reivindicações que geraram tanto obras emergenciais na sucateada rede de saneamento da bacia hidrográfica local como a elaboração de uma auditoria efetuada no período de Abril a Dezembro de 2001 pelo consórcio Fundação COPPETEC e Logos Engenharia S.A., onde o quadro encontrado no mínimo era estarrecedor. Algumas conclusões da auditoria são apresentadas em seguida:

- Idade da rede de esgoto das regiões periféricas a laguna Rodrigo de Freitas:
Década de 80 com 1070 metros, representando 3% do total da rede
Década de 70 com 370 metros, representando 1% do total da rede
Década de 60 com 3840 metros, representando 11% do total da rede
Década de 50 com 4930 metros, representando 14% do total da rede
Década de 40 com 6870 metros, representando 20% do total da rede
Mais de 60 anos com 13550 metros, representando 39% do total da rede
Mais de 100 anos com 4270 metros, representando 12% do total da rede
Chama-se a atenção que 2001, 51% da rede já apresentava mais de 60 anos de idade.
-O valor médio anual dos gastos realizados nos últimos quinze anos (1987-2001/R$1,69 milhões) é equivalente a menos de 1% do faturamento operacional anual estimado para área em estudo em 2001.

A partir destas informações foi gerado um Termo de Ajuste de Conduta entre a CEDAE e o Ministério Público Estadual visando reverter o quadro de degradação do sistema de saneamento.

Salienta-se que algumas intervenções como a construção da galeria de cintura e a retirada parcial do lodo do fundo da laguna, já geraram resultados positivos diretamente na ausência de novas mortandades desde o carnaval de 2002, período da última grande mortandade. No entanto os graves problemas de saneamento ainda persistem, onde a rede de drenagem de águas pluviais vem sendo progressivamente incorporada extra-oficialmente à rede de esgoto, transformando os canais da Lineu de Paula Machado, General Gárzon, Jóquei e Visconde de Albuquerque em valões de esgoto em plena zona sul da cidade do Rio de Janeiro, associado a lançamentos de esgoto em diversas galerias de águas pluviais.

ois é, lendo esse breve relato e relembrando o esgoto na Lagoa, as praias de Copacabana e São Conrado com valas negras, praia da Barra nos trechos entre o Quebra-mar e Pepê comprometidos em sua balneabilidade, lagoas da baixada de Jacarepaguá podres, percebe-se que historicamente a maioria dos administradores públicos não teve e continua não tendo NENHUM compromisso com a qualidade de vida da população e quer mesmo, lá no fundo do coração que TODOS nós nos DANEMOS!

Ano que vem, é o ano das promessas que NÃO SERÃO CUMPRIDAS, ano eleitoral, ano de muito sorriso, beijo em criança, polêmicas gratuitas e não esqueçam que esse será mais um verão de MERDA , nas lagoas,nas baías, nas praias e nos rios.
Pensem bem em quem vão votar, valorizem seu voto e cobrem os resultados.

Feliz ano velho!

MARIO MOSCATELLI - Biólogo - moscatelli@biologo.com.br

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