início bocadomangue Mario Moscatelli

CONTAGEM REGRESSIVA - UM TEXTO PARA NÃO LER

Num futuro, em algum lugar, em algum planeta.....

Ninguém ouviu quando ainda havia tempo.

Gastou-se tempo demais com discussões que tinham por objetivo levar a lugar nenhum.

Esboçou-se alguma reação, tímida, associada à imagem, ao marketing, com a idéia de que salvando o planeta, poderíamos ganhar mais dinheiro, justamente o mesmo veneno que o envenenou.

Agora acabou, não há mais como retroceder e os que têm alguma fé enchem os templos orando, pedindo perdão e morrendo sufocados ou adoentados.

A maioria sem perspectivas de saída transforma os centros urbanos em verdadeiras oficinas de carnificina onde as forças de segurança não conseguem mais esboçar qualquer reação de controle ou de repressão.

Falta tudo, de água potável à alimentos básicos para a grande maioria. Qualquer coisa que possa ser transformada em comida é caçada impiedosamente. O canibalismo vem sendo alardeado como uma opção extrema de necessidade.

As doenças veiculadas por nossa “fauna acompanhante” através de ratos, baratas, urubus e mosquitos, impiedosamente enchem os hospitais em total situação de colapso. Morre-se mais rápido dentro dos hospitais do que fora. É uma opção.

Febre amarela, dengue, leptospirose, tifo, peste bubônica, diarréias de causas variadas transformam as cidades em gigantescos cemitérios a céu aberto. Não há mais antibióticos disponíveis para todos, bem como a maioria dos organismos patogênicos criou resistência para quase todos os fármacos existentes.

O cheiro de podre é insuportável. Grande quantidade de corpos é queimada seja em valas coletivas ou em grandes incêndios produzidos em parcelas das grandes cidades. Muitos outros são abandonados nas estradas, ou bóiam servindo de alimento para novos futuros donos do planeta, os detritívoros.

Os que morrem primeiro são as crianças e os mais velhos. Os mais jovens desiludidos se matam nas ruas roubando, estuprando, fugindo de um mundo sem esperança. Não há mais ordem na maior parte do planeta. A civilização humana globalizada está rapidamente desaparecendo.

O contato é cada vez mais localizado. As informações são contraditórias. Especula-se que os oceanos estejam subindo numa velocidade 100 vezes mais rápida do que se esperava e, portando todas as cidades litorâneas estão agonizando, gerando um movimento migratório em todo planeta de 3.5 bilhões de pessoas, na qual a maioria morre por doenças ou por extermínios impetrados pelas populações situadas em áreas ainda menos afetadas. Ninguém sabe da verdade.

Com sua maior acidez, os oceanos não têm mais mostrado capacidade de absorver o carbono excedente na atmosfera, o que por sua vez gera mais acidez. As florestas reduzidas à 10% de sua área original em todo planeta, perecem sob chuva ácida e pelas alterações climáticas, gerando mais excedentes de carbono, gerando mais acidez e perda da fauna de solo. Alterações na temperatura dos oceanos, também permitiu além da alteração por completo do clima global como o conhecíamos há cinco mil anos, a eliminação de gigantescas quantidades de metano até então congelado em partes profundas dos oceanos, numa gigantesca ebulição sem precedentes.

O ar é intragável, vivemos, os que podem, dentro de ambientes artificiais, onde as mínimas condições ambientais de vida foram recriadas e mantidas à custa de muita energia. No entanto a segurança desses refúgios está com os dias contados, visto que desde o momento que são identificados, acabam sendo destruídos pelos excluídos.

Nada mais vejo com vida de minha janela. Animais, plantas, tudo morre numa velocidade jamais vista e com ele minha esperança de ver a vida como a conhecíamos prosperar.

As famílias ainda de alguma forma unidas têm cometido suicídios coletivos, visto que os vivos, como previsto tem inveja dos mortos.

Tamanha é a dor que a mesma pesa e se sente no ar.

CONTAGEM REGRESSIVA
"A civilização humana globalizada está rapidamente desaparecendo."


Para os que foram os motivadores diretos desse fim anunciado que presenciamos, alguns foram de imediato exterminados pelos seus próprios exércitos, outros confinados por seus próprios colaboradores, e a maioria mantida viva nos centros urbanos pela população, acorrentados nos pontos mais altos das cidades para que pudessem presenciar com toda a visibilidade a agonia do “conjunto de sua obra”.

Alguns argumentam que um messias estaria por vir para operar nossa redenção. A maioria desencantada afirma que o outro teria finalmente vencido com nossa ajuda.

A verdade mais profunda é que após todos os possíveis avisos, vindos de todas as partes, sempre optamos pelas medidas incipientes, pelas ações puramente economicistas, sem ter coragem de mexer na fonte, na raiz do problema. Não fomos corajosos o suficiente para entendermos que tínhamos nos transformado numa metástase do planeta e este agora reagia com toda a força e violência contra seu filho pródigo. Mais uma vez estávamos sendo expulsos do paraíso que insistimos em destruir.

Mesmo visto do espaço, o céu a maior parte do tempo é avermelhado, as águas são negras, pouca visibilidade, muita neblina e como disse um cheiro insuportável.

Todos que eu conhecia não estão mais aqui. Sinto alívio por eles. Não sei bem porque continuo escrevendo. Esperava ter sido um dos primeiros, mas por aqueles caprichos do destino não capitulei e continuo “vivo” com ódio, e é o que me tem mantido aqui, vendo, presenciando como o último relator o que acompanho da minha janela ou de minhas caminhadas com roupas de mergulho.

A cada dia as águas estão mais próximas do abrigo. O silêncio ensurdecedor dos mergulhos é um alento para o ruído das batalhas urbanas, sem sentido, sem fim, entremeadas pelos gritos finais de uma sociedade míope.

Ouço tiros lá embaixo. Acho que não há mais tempo e o que escrever. Tudo é horrível e sem esperança. Perdi tudo, até a mim mesmo. Espero que seja rápido e finalmente eu descubra o maior dos segredos.

Mario Moscatelli - Biólogo - moscatelli@biologo.com.br

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