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A Paisagem Sonora

A Paisagem Sonora – Caros biólogos, esse é o primeiro texto de um convidado na minha coluna, que traz um olhar diferente e muito interessante para a ecologia, especialmente porque esse olhar vem originalmente da música, e não da biologia.

José Henrique Nogueira é Mestre em Educação Musical, Pós-graduado em Educação, Graduado em Musicoterapia e Diretor do Espaço Musical 23 (espaco23.com/jose-henrique-nogueira)

Ecologia Hoje #10 :: Branca Medina

A Paisagem Sonora

A paisagem sonora - carros
A paisagem sonora. by Agência Brasília

O sentido da visão é soberano na orientação e condução dos manifestos humanos relatando, denunciando, demonstrando a degradação incessante do planeta. A magnífica e complexa estrutura da visão capta e interpreta as imagens que se apresentam a seu campo de percepção. Imagens são arquivadas, interpretadas e possibilitam a comparação daquilo que foi um dia e como se encontra atualmente.

A visão pode acompanhar, por exemplo, o curso de um rio e, amanhã, se esse mesmo rio se extinguir, logo a visão informará ao cérebro o fato e conclusões poderão ser tiradas e ampliadas através de conversas, estudos e pesquisas, para entender mais ainda esse fato.

É assim que se dá, na maioria das vezes, a primeira percepção da degradação do meio ambiente. A constatação, a observação e o lamento são, inicialmente, feitos pela perda da paisagem, do visual, da fotografia, da cena. A degradação não é percebida pela falta do frescor da água na pele, do odor que o rio trazia em suas correntes, do sabor da água. Assim também não aconteceu pela falta do som que o rio produzia, e parou de emitir.

O vazio – aquilo que se extinguiu – ou o excesso – aquilo que ultrapassou os limites causados pela poluição ambiental – afeta todos os nossos sentidos simultaneamente em cadeia. Porém, é fato que aquilo que é invisível nos incomoda menos, mas nos atinge da mesma maneira. O ditado é bem claro: “O que os olhos não veem o coração não sente”. A degradação ou modificação do ambiente sonoro é, às vezes, silenciosa e imperceptível até mesmo aos ouvidos mais atentos.

Interferência sonora humana – A Paisagem Sonora

Recantos que outrora eram paraísos de orquestrações sonoras espontâneas hoje estão ameaçados pela interferência sonora humana que alcança, com seus “ruídos culturais”, os mais recônditos santuários naturais, onde antes os sons se harmonizavam divinamente.

Poluição sonora - A Paisagem Sonora
Fiscalização contra poluição sonora | by Agência Brasília

Estou aqui chamando de “ruídos culturais” qualquer tipo de perturbação que venha afetar um percurso da cadeia harmoniosa e natural de um determinado ambiente. Essas interferências podem ser químicas, como os pesticidas que modificam silenciosamente características invisíveis no ecossistema, e podem ser físicas, tal como uma ação de desmatamento.

Todas essas perturbações silenciam e/ou modificam uma quantidade imensa de informações sonoras que existiam antes num determinado ecossistema. Ou seja, a alteração da “paisagem sonora” de um ambiente não se dá apenas com a introdução de ruídos de máquinas, de ruídos humanos. A poluição sonora está relacionada também com a extinção de sons de um ecossistema em equilíbrio dinâmico com sua flora, fauna e formação geológica.

Paisagem sonora (soundscape

A expressão “paisagem sonora” (soundscape) surgiu no fim do século XX e sua criação é atribuída a R. Murray Schafer, professor, compositor e pesquisador da sonoridade de diversos hábitats. E, segundo o músico e naturalista Bernie Krause, em seu livro A grande orquestra da natureza, “as paisagens sonoras naturais são as vozes de sistemas ecológicos completos. Todo organismo vivo, do maior ao mais diminuto, e cada lugar da Terra, têm sua própria assinatura acústica.”

Grilo.

O senso comum costuma levar em consideração que a paisagem sonora é constituída pela fauna de cada região: os pássaros chilreando, grilos cricrilando, lobos uivando, sapos coaxando. Também encontramos gravações dos sons provenientes dos ventos, das chuvas e do marulho do mar. Mas é fundamental ampliar essa concepção e observar mais detalhadamente os espaços geográficos de cada região para entender que a paisagem sonora é um conceito maravilhoso e muito mais complexo.

Possibilidade de sons

Além da fauna e dos fenômenos naturais, é importante perceber que cada espaço tem sua formação geográfica, que é revestida por uma flora característica, com vegetação, folhas, galhos, ramos, flores, todas diferentes umas das outras. Ou seja, a flora e a geografia do local também vão interferir diretamente na paisagem sonora. O relevo de cada espaço formará uma concha acústica espontânea, própria e personalizada, que proporcionará um ambiente sonoro fechado, aberto, com mais ou menos reverberação. Isso mostra apenas um pouco da complexa possibilidade de sons que cada espaço geográfico pode proporcionar.

Bernie Krause elucida melhor essa reflexão: “Em um mesmo local, a acústica pode variar muito no decorrer de cada estação, dependendo também da densidade e do tipo da vegetação predominante (por exemplo, a folhagem em formato de agulha das coníferas em oposição às folhas mais largas dos vegetais caducifólios) e das características geológicas fundamentais da área (isto é, terreno rochoso, acidentado, montanhoso ou plano).”

A afinação do mundo  A Paisagem Sonora

Murray Schafer, em seu livro A afinação do mundo, descreve uma paisagem sonora na Nova Zelândia, em Tikitere, que para ele foi a mais marcante em sua vida, assim: “…grandes campos de enxofre fervente, espalhados ao longo de muitos acres de terra, são acompanhados por estranhos ribombos e gorgolejos subterrâneos. O lugar é uma chapa pustulenta na pele da terra, com infernais efeitos sonoros em ebulição espalhando-se com o vento”.

Assim como por meio da música podemos acompanhar a história da humanidade, podemos pelos sons perceber, até mesmo conhecer, as inter-relações entre os seres vivos de um determinado ecossistema. Podemos mapear a evolução, a degradação, a modificação da paisagem sonora de um determinado espaço geográfico; numa floresta, numa cidade, num bairro, numa escola, numa fábrica. O ambiente sonoro pode proporcionar informações, estudos e pesquisas de ordem ecológica, histórica, fisiológica e psicológica.

Evolução sonora

A evolução sonora de uma cidade passa pelo mapeamento dos sons que se perderam ao longo do tempo, sons que surgiram e continuam surgindo e até sons que se modificaram, ruídos que foram substituídos por outros. A introdução do som do telégrafo, telefone, rádios, televisões, computadores, máquinas registradoras, campainhas, bicicletas, motos, carros, aviões, helicópteros, revela uma larga demonstração da capacidade da humanidade para criar ruídos. Quanto mais ruído, mais poder.

A sociedade pós-industrial passou a conviver de forma muito particular com o volume do som, do ruído, interferindo e silenciando vagarosamente o silêncio. A produção ruidosa em intenso volume sonoro trouxe uma sensação sádica de poder e intoxicou sonoramente os locais de trabalho, as praças públicas, os lares, inebriando a sociedade (o som excessivo e intermitente tem essa capacidade). Aliás, esse uso da intensidade do som no poder de conquistar pode ser visto já desde a infância, quando, em seus grupos, as crianças gritam para conseguir serem ouvidas e conquistar seu espaço.

Esgoto sonoro – A Paisagem Sonora

São muitos os esforços para tentar reduzir os malefícios causados pela inconsequente avalanche de máquinas ruidosas que invadiram o ambiente. Já existem ONGs e empresas preocupadas e agindo para tentar minimizar os impactos causados pela poluição sonora. Apesar dos esforços ainda é muito grave a situação da paisagem sonora em nosso planeta. Digo grave não só pelo “esgoto sonoro” que corre a céu aberto sem nenhuma ou com pouquíssimas manifestações de reação, mas também pela falta de educação sonora nos projetos escolares. A ecologia acústica não conseguiu espaço nos currículos das escolas. As escolas por sua vez são espaços onde o ruído atinge níveis elevados de decibéis, portanto, onde se deveria exercitar a consciência da importância da construção de uma paisagem sonora agradável, harmoniosa; contudo, ocorre justamente o contrário.

Alguns autores afirmam que a humanidade está perdendo aaudição gradativamente. O não uso desse sentido vem atrofiando a capacidade humana de ouvir, de decifrar os códigos sonoros que percorrem em ondas pelo ar. Não pela falta de som, muito pelo contrário, mas justamente pela quantidade de informações acústicas e pela exposição excessiva da audição a altas intensidades de volume sonoro diariamente nas cidades.

Exercitando a habilidade da escuta
Cachoeira na Turquia
Cachoeira na Turquia. by zolakoma

Preocupado com essa falta de educação auditiva, idealizei e elaborei dois projetos: duas instalações para o exercício e o aprimoramento da audição. O primeiro é o “Comunicador Tentáculos”, no qual, através de conduítes engenhosamente espalhados pela escola, as crianças conversavam, emitiam sons e, principalmente, exercitavam a habilidade da escuta (disponível em: https://youtu.be/Mlvr-hlrgVc) O outro projeto educativo foi: “Os Borbulhadores”, instalação feita com três torres borbulhantes de tubos de PVC que emitem uma sonoridade interessante, instigando a audição através de orifícios feitos ao longo do tubo (disponível em: https://youtu.be/9ZLgIEc9ccA).

Educação do ouvido

A educação do ouvido, da audição, é muito difícil. Requer muito trabalho, talvez seja necessário um projeto transdisciplinar que consiga iniciar o aluno desde a tenra idade. A ecologia acústica está diretamente ligada a essa capacidade de acuidade auditiva. Como vimos anteriormente, santuários sonoros vão se extinguindo sob a desenfreada ação humana de silenciar as mensagens sonoras naturais da fauna, da flora e da geografia acústica de cada espaço. Esquecemos a cada dia as informações trazidas nos ventos uivantes, dos avisos propagados nos sons dos tremores do chão, nos distanciamos do som mágico do mar que habita fantasticamente todas as conchas.

A dificuldade que a humanidade encontra para perceber a paisagem sonora e reconhecer e respeitar sua importância na harmonia da vida está diretamente ligada à sua incapacidade de ouvir. Por sua vez, essa incapacidade revela o bloqueio que todos nós temos de fazer “silêncio”. O silêncio mereceria uma reflexão muito mais profunda, pois a complexidade desse conceito é muito grande. Ele vai encontrar ramificações na música, religião, física, psicologia, filosofia.

Importância do silêncio

Documentário A Vida das Plantas
Documentário A Vida das Plantas. Dente-de-leão.

Na área musical, muitos compositores utilizaram o silêncio com mais evidência em suas obras e em suas reflexões, mas nenhum deles foi tão marcante como John Cage. Em sua composição 4’33’’, na qual o músico fica estático, sem tocar uma só nota, interagindo com os possíveis ruídos da sala de concerto durante os quatro minutos e trinta e três segundos, Cage, além de destacar a importância do silêncio na música, mostra a complexidade desse conceito. Ele também aponta para o fato de que encontramos modos de silêncio, mas que um silêncio total, único, talvez nunca.

E, dentro dessas “possibilidades de silêncio”, uma delas é que, para aprendermos a ouvir, entender e preservar, precisamos ficar quietos, respirar, perceber a admirável trilha sonora que nos cerca. Seja na floresta, na área rural, nas cidades, nas montanhas, sempre haverá uma paisagem sonora preenchendo a vida de sentido, de essência e de emoção.

Leitura sugerida:

Krause, B. (2013). A grande orquestra da natureza. Descobrindo as origens da 

Cage, J. (2011). Silence: lecturesandwritings. WesleyanUniversity Press.

Jourdain, R. (1998). Música, cérebro e êxtase. Objetiva.música no mundo selvagem. Zahar.

Schafer, R. M. (1991). O Ouvido pensante. UNESP.

Schafer, R. M. (2001). A afinação do mundo. UNESP.

Winisk, J. M. (1989). O Som e o sentido. Uma outra história das músicas. Companhia das Letras.

José Henrique Nogueira –  Espaço Musical 23 (espaco23.com/jose-henrique-nogueira)

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