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Fogo no Cerrado

Fogo no Cerrado… e eu com isso?

Uma breve reflexão sobre as relações Cerrado–fogo–homem e implicações para formulação de políticas públicas e gestão ambiental no Cerrado

Fogo no Cerrado::Fernando Tatagiba

Fogo no Cerrado - queimada na mata
19/09/2006. Distrito Federal, Granja do Torto, Núcleo Rural Boa Esperança II. Queimada descontrolada avançando sobre o cerrado em direção às chácaras do local.

Depois da pequena peleja contra uma queimada que avançava em direção à chácara onde moramos, no Distrito Federal, achei que deveria compartilhar algumas considerações sobre Cerrado, fogo e “nós no meio disso”, feitas a partir de minhas vivências profissionais e pessoais neste bioma.

Ao longo de toda sua extensão o Bioma Cerrado pode ser caracterizado basicamente pela predominância das formações de cerrado stricto sensu (savanas) na paisagem. Contudo, o bioma não é formado somente por savanas, também abrigando formações vegetais que vão de campos limpos a exuberantes florestas (que podem estar ou não associadas a cursos d’água). Mas qual seria, então, o fator responsável pela atual proporção entre as formações florestais, savânicas e campestres ao longo do bioma.

Fogo, um elemento do Cerrado

Atualmente é amplamente aceito que clima, solos e fogo são altamente interativos nos seus efeitos sobre a vegetação no Bioma Cerrado. Apesar de fundamental importância, chuvas sazonais e baixa fertilidade de solo parecem ser insuficientes para explicar a presente distribuição da vegetação de savana ao longo do bioma.

Por exemplo, vastas áreas no sudeste do Brasil com forte sazonalidade pluviométrica e solos com baixos teores de nutrientes (como o leste de Minas Gerais) têm uma cobertura contínua de florestas semidecíduas e não são ocupadas por cerrado.

Plantas em floração após a passagem do fogo.
Plantas em floração menos de dois meses após a passagem do fogo.
A: jalapa (Mandevilla illustris); B: gravatá (Bromelia sp.)

O fogo assume, então, papel de fator chave para explicar a atual proporção entre as diferentes formações vegetais no bioma. Porém, dizer simplesmente que o fogo é um componente natural no Cerrado acaba por encobrir o principal responsável pela sua ocorrência na atualidade: o próprio homem, e deliberadamente na maior parte dos casos. – O fogo é natural do Cerrado VÍRGULA – A ocupação humana na região alterou drasticamente o regime natural das queimadas (época do ano e freqüência) trazendo consequências para estrutura da vegetação e sua composição florística. Não estamos falando aqui somente da ocupação pelos sertanejos contemporâneos. A literatura é abundante em evidências de que o homem toca fogo no Cerrado há pelo menos 10.000 anos.

Se parece razoável supor que raios são o principal agente causador de queimadas naturais, devemos considerar que sua maior incidência está concentrada durante a estação das chuvas, quando o teor de umidade na superfície do solo e na vegetação está bem mais elevado. Frequência, intensidade e extensão das queimadas eram bem menores quando o fogo no Cerrado ocorria apenas (ou predominantemente) devido a causas naturais.

Fogo e biodiversidade

O fogo em alta frequência tende a favorecer as fisionomias mais abertas, como os campos, onde há espécies que florescem e frutificam em abundância após as queimadas, nos proporcionando belos espetáculos. Entretanto, o esplendor pós-fogo proporcionado pela floração de algumas espécies ofusca a gradual perda de diversidade e drástica alteração na estrutura da vegetação que ocorrem quando as queimadas são muito frequentes.

fogo no Cerrado
A: inflorescência do coquinho-de-vassoura (Syagrus petraea) danificada pelo fogo; B: árvore de copaíba (Copaifera langsdorfii) com mais de 10m de altura, remanescente de mata semidecidual em paisagem atualmente savânica; C e D: árvores mortas pelo fogo recorrente; E: pequi (Caryocar brasiliese) rebrotando após queimada, com ramos de rebrotas anteriores queimados.

A expectativa, corroborada por estudos recentes, é de um aumento na cobertura vegetal se diminui a frequência de fogo. Alta incidência de fogo (queimadas anuais ou bianuais, p.ex.) tende a manter a vegetação em estádios sucessionais mais iniciais. Não levar isto em consideração pode nos induzir ao erro em trabalhos de caracterização voltada ao manejo ou conservação da flora.

Reflexão

São muitos os locais onde poderíamos encontrar matas semideciduais no lugar de atuais fisionomias de cerrado (savana), locais onde haveria cerrados mais densos ou até cerradões, onde hoje se vê campos e cerrados ralos. Isto nos é mostrado claramente quando associamos flora, estrutura da vegetação e histórico do fogo no local. Indivíduos de espécies tipicamente arbóreas podem ser mantidos como um arbusto de poucos centímetros de altura, se lhe pegam fogo todos os anos.

Vivendo no Cerrado há pouco mais de três anos e, por mais de dois anos convivendo diariamente com a população rural na região da Chapada dos Veadeiros, me convenci de que a tese da “combustão espontânea” na época seca não passa de lenda (salvo raras e eventuais exceções). Atualmente, a principal causa do fogo no cerrado não é descuido de fumante porcalhão que joga bituca de cigarro ou fósforos pela janela do carro, mas predominantemente agricultural.

Os planos e ações de prevenção e controle do fogo
O alarmante desmatamento do Cerrado
O alarmante desmatamento do Cerrado

As queimadas têm sido a técnica mais empregada como forma de “manejar” lavouras ou pastagens naturais (formações mais abertas) e plantadas. É a maneira preferida de “limpar” o pasto ou a área que será cultivada no início das chuvas. Como a queimada é realizada normalmente no período da seca e muitas vezes não são adotadas as medidas prévias de controle, sua intensidade e extensão tende a ser aumentada. Há casos em que a frente do fogo avançou sem trégua por mais de 100 km ao longo da Serra do Paranã, borda leste da Chapada dos Veadeiros, durante duas semanas.

Os planos e ações de prevenção e controle do fogo normalmente são desarticuladas, as campanhas publicitárias de conscientização veiculadas nos grande meios de comunicação parecem errar o alvo, pois são focadas nos “motoristas descuidados”. O trabalho das brigadas de incêndio torna-se inglório, pois, por mais fogo que se apague mais fogo virá. Está claro para mim que a maneira mais eficiente de combater as queimadas é antes que elas ocorram, por meio de programas e ações de educação em várias frentes.

O que pode ser feito

O que pode ser feito com a formulação de políticas públicas integradas, incorporando a questão das causas e efeitos do fogo no Cerrado, que contemplem e articulem os diversos agentes na região e suas respectivas unidades de gestão (sejam propriedades particulares, unidades de conservação, municípios, etc.). Ninguém vai resolver sozinho o problema das queimadas, pois como se diz: o fogo anda e todos temos vizinhos.

As fotografias de efeitos do fogo sobre a vegetação foram tiradas em novembro de 2004, na Reserva Natural do Patrimônio Natural-RPPN Parque da Capetinga, do senhor Cid Queiroz, no município de São João d’Aliança, Chapada dos Veadeiros-GO, durante os trabalhos de campo para caracterização da vegetação (realizada pela Escola Bioma Cerrado) para o plano de manejo da reserva, coordenado e elaborado pela Fundação Pró-Natureza, FUNATURA.

Referências e sugestões bibliográficas:
  • Hoffmann, W.A. & Moreira, A.G. 2002. The Role of Fire in Population Dynamics of Woody Plants. In Oliveira, P. S. e Marquis, R. J., eds., The Cerrados of Brazil: ecology and natural history of a neotropical savanna, pp. 159-177. Nova York. Columbia University Press.
  • Ledru, M. 2002. Late Quaternary History and Evolution of the Cerrados as Revealed by Palinological Records. In Oliveira, P. S. e Marquis, R. J., eds., The Cerrados of Brazil: ecology and natural history of a neotropical savanna, pp. 33-50. Nova York. Columbia University Press.
  • Miranda, H. S. 2000. Queimadas de Cerrado: Caracterização e impactos na vegetação. In Plano de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do DF, pp.133-149. Brasília: Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos.
  • Miranda, H. S., E. P. Rocha e Silva, e A. C. Miranda. 1996. Comportamento do fogo em queimadas de campo sujo. In H. S. Miranda, C. H. Saito e B. F. S. Dias, eds., Impactos de Queimadas em Áreas de Cerrado e Restinga, pp1-10. Brasília: ECL/Universidade de Brasília.
  • Miranda, H. S., Bustamante, M. M. C. & Miranda, A. C. 2002. The Fire Factor. In Oliveira, P. S. e Marquis, R. J., eds., The Cerrados of Brazil: ecology and natural history of a neotropical savanna, pp. 51-68. Nova York. Columbia University Press.

Fernando Tatagiba, Msc.  tatagiba@biologo.com.br – Biólogo/botânico :: Plantas do Cerrado

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