Abolindo a Virgindade
Abolindo a Virgindade: Celebrando dez anos da participação da Ecóloga Branca Medina, relançamos abaixo o primeiro artigo da autora publicado no nosso site. Boa leitura!
Ecologia Hoje #1 :: Branca Medina
Quem nunca sonhou em estar em um lugar completamente virgem, em contato total com a natureza, sem pensar nos problemas mundiais e pessoais (que sempre são tantos!), sem nenhuma interferência humana, a não ser a sua própria?
E quem é que em certas situações não julgou estar realmente em tal lugar? Mas… o que estamos querendo dizer exatamente com “virgindade”, neste caso?
Abolindo a Virgindade
Pensando nas florestas tropicais, mais exuberantes e chamativas, que sempre nos trazem uma certa paz interior. Floresta virgem seria o mesmo que floresta primária? Sem distúrbios? Remota? Natural? Madura? Ou simplesmente antiga?
Vamos examinar esta questão com calma. Para começar, a ideia da falta de distúrbios normalmente se refere à não intervenção humana, ou melhor, à falta de conhecimento nosso sobre isso. Dizer enfaticamente: “esta floresta é intocada por seres humanos” é algo realmente problemático.
Os impactos humanos foram tantos historicamente (desde que o homem existe), e continuam tão intensos atualmente, que a comunidade científica está de acordo que florestas realmente virgens, ou intocadas pelo homem, provavelmente não existem (principalmente nos trópicos).
Indo para uma escala de influência antrópica maior, todas as florestas do mundo, sem exceção, estão sendo influenciadas pelas atividades humanas através do aumento drástico de gás carbônico na atmosfera e das mudanças climáticas. Estudos têm indicado que estas transformações estão deixando as florestas tropicais mais dinâmicas, particularmente à amazônica. Isto é, está havendo aumento das taxas de mortalidade e de trocas de indivíduos e espécies.
Sequestro de carbono – Abolindo a Virgindade
Também está aumentando o armazenamento de carbono e a produtividade. É o famoso sequestro de carbono. Estima-se que a vegetação terrestre absorva entre 20 e 30% do gás carbônico excessivo causador do efeito estufa e contribuidor importante das mudanças climáticas.
Com o aumento da quantidade de carbono disponível, as espécies de crescimento mais rápido, na maioria emergentes e da parte superior do dossel, são selecionadas e aumentam em abundância. Desta forma, ocorre também uma mudança na composição de espécies de plantas, o que por sua vez influencia a dinâmica, arquitetura e funcionamento ecológico da floresta.
Entretanto, essas árvores oportunistas têm madeira de menor densidade e menor eficiência em armazenar o excesso de carbono. Ou seja, o seqüestro de carbono tende a ficar mais lento e menos eficiente ao longo do tempo. Isto tudo só para ilustrar até onde vai a influência do homem, mesmo sem que percebamos diretamente.
Então, ao invés de usar um conceito que não tem base e nem lógica, vamos passar a uma questão mais prática. Afinal, e aqueles lugares tão remotos, aparentemente intocados ou virgens (lembrar que é sempre sob a nossa visão)?
Floresta virgem – Abolindo a Virgindade
O termo floresta virgem (e correlatos como “intocada” ou “sem distúrbios”) não é recomendado nas pesquisas científicas atualmente. Ao invés, a ideia é simplesmente utilizar algumas características estruturais e funcionais, fáceis de serem observadas e avaliadas, quando se classifica uma floresta. O “tipo” de floresta sempre estará num contínuo entre pastagens abandonadas e florestas de crescimento antigo. Nada mais que isso.
As matas mais próximas do extremo antigo deste contínuo teriam grande área basal, distribuição dos diâmetros das árvores bem heterogênea, altura da copa variável – com pequenas clareiras sendo frequentes e as grandes raras, cipós e epífitas são comuns, troncos largos estão sempre presentes, há grandes quantidades de pedaços de madeira espalhados, presença certa de árvores gigantes (acima de 70cm de diâmetro) e muitas espécies de árvores com sementes grandes dispersas por animais, de rápida germinação. Assim fica fácil perceber que qualquer inferência sobre atividade humana não tem a menor importância. Até porque o grau de interferência é uma questão de escala. Qualquer ser vivo interfere no seu entorno, desde o momento que inicia sua vida. Basta começar a respirar, por exemplo.
Aí entra a ideia de “engenheiros ambientais”, que seriam aqueles organismos que direta ou indiretamente modificam a disponibilidade de recursos para outras espécies, através de mudanças físicas de materiais bióticos e abióticos. Fazendo isto, eles modificam, mantém e / ou criam habitats. Este é um conceito interessante, mas estamos modificando, mantendo e criando habitats constantemente. E isso é válido para cada ser vivo neste planeta.
Ação antrópica – Abolindo a Virgindade
Um bom exemplo de mudança radical causada por seres vivos na atmosfera, no clima, enfim, no habitat da terra, foi o surgimento e proliferação dos primeiros seres autotróficos. A questão é que os seres humanos desta nossa sociedade entraram num grau de transformação do ambiente absurdamente enorme, de maneira muito rápida, causando transformações profundas e em muitas vezes irreversíveis. A queima dos combustíveis fósseis é o exemplo clássico.
Mas seria a primeira transformação acima um processo natural e a segunda, artificial? Ou ainda, uma boa e a outra ruim? Neste ponto devemos nos perguntar: o que é natural? Qual é a definição exata de natureza? Tudo aquilo que não é feito pelo homem? Mas o homem não faz parte da natureza? Não é um produto “natural” da evolução? Enfim, o homem é natural. E ele tem desejo de fazer e realizar algumas coisas. O que é natural. Só que muitas delas tem consequências desastrosas para as outras espécies. A não ser as oportunistas, como ratos, baratas, moscas, capim gordura etc. É o que se chama de “desequilíbrio ecológico”. Ou “desequilíbrio da natureza”. Esta ideia de “equilíbrio” ainda leva a outra discussão, mas fica para uma próxima oportunidade.
Bioética – Abolindo a Virgindade
Assim começamos a entrar no terreno da ética. Sim, o homem é natural, modificando muito seu ambiente ou não. Mas ele precisa estar feliz, ou seja, sobreviver com bem estar no planeta Terra. Em outras palavras, precisa realizar uma “felicidade sustentável”. Enquanto a sustentabilidade econômica estuda como produzir e consumir ao longo do tempo de maneira sustentável (em outras palavras, perpétua), a felicidade sustentável tentaria encontrar o equilíbrio entre o maior número de pessoas e seres satisfeitos vivendo em conjunto, a fim de que a perpetuação de cada espécie seja possível.
Isto deve ocorrer em dois eixos principais: 1. presente – futuro (ser feliz de maneira a conciliar o desejo no presente sem prejudicar o futuro, mas não viver o presente infeliz preso nos desejos futuros) e 2. indivíduo – sociedade (a felicidade individual em complementação à do grupo e vice versa, buscando sempre um meio termo).
Buscando o equilíbrio – Abolindo a Virgindade
Ambas faces desta sustentabilidade têm relação direta com os dois extremos possíveis da relação humana com o planeta: ser feliz agora e consumir tudo que satisfaça seus desejos, no sentido mais amplo da palavra, resultando em infelicidade ou “insustentabilidade” futura e prejudicando o grupo. Ou não consome nada no presente pensando na sustentabilidade futura, mas é infeliz agora enquanto deixa o planeta “bem”. Claramente, é preciso buscar o equilíbrio, mais uma vez, e sempre. Entende-se por equilíbrio aqui um meio termo entre estes extremos.
Torço para que a humanidade como um todo deixe de ser inconsequente e tão pouco inteligente na maneira que vem buscando realizar seus desejos… Nós, “ecologistas” ou apenas pessoas preocupadas com o futuro do nosso planeta, precisamos agir, se acreditamos realmente que nossa forma de viver “sustentavelmente” é a mais coerente. A meu ver é razoavelmente simples, pode soar meio clichê, mas basta cada um fazer a sua parte, agindo localmente e pensando globalmente. Em busca da sua “felicidade sustentável”.
Desafios e objetivos – Abolindo a Virgindade
Não importa se aquela exuberante floresta antiga já tenha sido um ambiente completamente diferente, ou que aquela outra floresta menos exuberante esteja ainda nos estágios iniciais de sucessão, regenerando-se. Precisamos manter o equilíbrio dinâmico entre o que consumimos e o que produzimos, e ainda, o que preservamos.
Divagações e reflexões à parte, no sentido mais prático da conservação, o que nos resta é tentar manter essas florestas antigas, importantíssimas como reservatório de informação genética / evolutiva e recuperar áreas degradadas; deixar a regeneração natural trabalhar em campos abandonados próximos a florestas mais antigas, através principalmente da dispersão de propágulos, da chuva e do banco de sementes; monitorar as influências das mudanças climáticas, que estão aí, e torcer para que elas não tragam consequências muito drásticas em longo prazo, por que estas sim, me parecem modificações inevitáveis e importantes.
Branca M. O. Medina – branca@biologo.com.br
Bióloga especializada em ecologia
Leitura sugerida:
Brown, J. H. 1995. Organisms as engineers: a useful framework for studying effects on ecosystems Trends in Ecology and Evolution 10: 51-52.
Clark, D. B. 1996. Abolishing Virginity. Journal of Tropical Ecology 12: 735-739.
Laurance, W. F. et al. 2004. Pervasive alteration of tree communities in undisturbed Amazonian forests. Nature 428: 171-175.
Contei com a colaboração fundamental de Luis Carlos Lopez.
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