Darwin atualizado
Darwin atualizado: Leitores brasileiros ganharam duas edições atualizadas do clássico A Origem das espécies, com tradução e organização do filósofo Pedro Paulo Pimenta, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Muito da ciência envolvida em A origem das espécies já caducou, mas o pensamento que ela suscita ainda vale.
Darwin atualizado
23/9/2020 :: Maria Guimarães/Pesquisa FAPESP. CC BY-ND 4.0
Entre os antecessores [de Darwin] está o naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), que, em sua Filosofia zoológica de 1809, mostrou formas dos seres vivos em constante transformação em consequência de relações com o meio.
Também o geólogo britânico Charles Lyell (1797-1885), considerado fundador da geologia moderna, que contribuiu com a noção de que os processos geológicos que conduziram à configuração atual do mundo resultam de um processo lentíssimo ao longo de milhões de anos, permitindo entender que registros fósseis seriam testemunhos de organismos que fazem parte dessa narrativa da vida.
Em um momento no qual continentes eram vistos como fixos, era difícil explicar semelhanças biológicas observadas entre continentes distintos, e em alguns momentos Darwin invocou eras glaciais (controversas à época) que teriam formado pontes transitáveis. Eram soluções criativas de uma mente que se apoiava em fatos, mas podia transcendê-los fazendo conexões inusitadas.
Esse olhar histórico sugere que o século XIX estava preparado, em certa medida, para aceitar a descendência com modificação por seleção natural como explicação de como surge a diversidade biológica.
A maior prova disso foram as conclusões semelhantes atingidas por Alfred Russel Wallace praticamente ao mesmo tempo. Darwin teria, porém, chegado antes e ido mais longe em suas explicações, e por isso ganhou a primazia na apresentação conjunta organizada por Lyell e o botânico Joseph Hooker (1817-1911) em Londres.
Analisando A Origem das espécies
À primeira vista surpreende que a leitura de um tratado de economia política, An essay on the principle of population, publicado em 1798 pelo economista britânico Thomas Malthus (1766-1834), tenha precipitado a compreensão por Darwin de que nem todos os que nascem podem sobreviver. Que algo no ambiente aponta os sobreviventes mais prováveis e que isso pode estar por trás de como as espécies se modificam ao longo de um horizonte temporal mais amplo do que parece possível a olhos criacionistas.
Mas de certa maneira esse cruzamento de áreas do conhecimento não parecia tão inusitado – era comum a economia tomar emprestada a terminologia da fisiologia, por exemplo.
As resenhas publicadas à época destacam o caráter controverso da publicação e parecem ter sido resultado de uma estratégia comercial, de acordo com Bizzo. Ele conta que, antes do lançamento do livro, exemplares foram enviados para pessoas influentes em diferentes países – com destaque para Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos – na expectativa de repercussão qualificada. “Foi uma estratégia de marketing global, pensando também na possibilidade de reimpressão nos Estados Unidos.”
História Natural
Uma das resenhas incluídas no volume organizado por Pimenta é do paleontólogo britânico Richard Owen (1804-1892), adversário da teoria de Darwin. Concentrado no conhecimento paleontológico, ele rejeita o que vê como especulações que não podem ser comprovadas, sobretudo a noção do ser humano como um macaco transmutado.
O botânico norte-americano Asa Gray (1810-1888), um dos fundadores da história natural nos Estados Unidos e um dos primeiros convertidos à nova ideia, defendeu a publicação apesar de denotar dificuldade com o conflito em relação à ótica religiosa. O zoólogo Thomas Huxley (1825-1895), outro aliado de Darwin, destacou a impossibilidade de se comprovar a teoria – algo que vem sendo feito aos poucos até hoje.
O livro é impalatável sob muitos aspectos”, ressalta o filósofo. Tem destaque o fato de a seleção natural ser cega em relação à possibilidade de sobrevivência, em vez de seguir um propósito direcionado.
O gênio de Darwin
Ao contrário do rumo deliberado da seleção artificial feita por criadores, os efeitos naturais são desvinculados de intencionalidade. Essa visão, de um ateísmo intrínseco, gerava um desconforto por oposição à previsível ordem divina.
“O gênio de Darwin foi perceber que o mais adaptado sobrevive, mas o organismo não tem como prever o próximo passo”, diz Pimenta, ressaltando que o próprio britânico teve dificuldades em aceitar a insegurança dessa visão.
Parte da dificuldade está no lento andamento da seleção natural. Pimenta exemplifica com a extinção da fauna do Pleistoceno, cerca de 11 mil anos atrás, que se precipitou devido à ação humana.
Mesmo assim, o declínio não aconteceu de um dia para o outro e, a rigor, não terminou. “Estamos acabando com o elefante há 30 mil anos”, diz. “Vencemos, mas não se sabe por quanto tempo.”
Darwin e o ser humano
Outra visão sagrada abalada por A origem das espécies é a de que o ser humano seria o ápice evolutivo, como se tudo o que veio antes tivesse como único objetivo a nossa criação.
A ideia não é estranha mesmo nos dias de hoje, em que ainda é difícil vislumbrar um mundo sem pessoas.
“Darwin ia no caminho de aniquilar a primazia do homem, mas deu um passo atrás”, ressalva Pimenta: as características morais magníficas do cérebro humano seriam um componente evolutivo como qualquer outro.
Um pioneiro
“A teoria de Darwin tem impacto porque é muito forte do ponto de vista da estruturação”, avalia Pimenta. Muito da ciência envolvida ali já caducou – os conceitos de estrutura anatômica, de embriologia e de hereditariedade, por exemplo – mas o pensamento que ela suscita ainda vale. “Chega a ser subversivo, quando a pessoa senta e lê.”
Por outro lado, Bizzo defende que essa leitura deve vir em uma segunda etapa do estudo, com a visão moderna já sedimentada. “Ler Darwin para alcançar uma compreensão atual sobre evolução é um equívoco.” Isso posto, afirma que entender como se chegou ao conhecimento e como isso mudou radicalmente é combustível para um pensamento criativo. (Leia mais em Uma nova Origem das Espécies)
> Livro: DARWIN, C. A origem das espécies. 1859. São Paulo: Ubu e Edipro, 2018.
>> Fonte: Revista Fapesp > Novas origens
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