Reconstruindo Museus
Reconstruindo museus: reformas ou tragédias podem fazer acervos crescerem ou se transformarem. Museus danificados ou destruídos se reorganizam.
Reconstruindo museus
31/8/2020 :: Gilberto Stam/Pesquisa FAPESP
Na virada do século XIX para o XX, o entorno do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), conhecido como Museu do Ipiranga, foi provavelmente palco de rituais de matriz africana com oferenda animal e simpatias. A suspeita vem de artefatos como fragmentos de louça, vidraria, peças de metal, dentes de porco e fragmentos de crânio de boi ou vaca, além de uma dentadura e duas moedas de 200 réis, encontrados no canteiro lateral do museu e em frente a ele, a uma profundidade de cerca de 50 centímetros. Os achados se deram no contexto da extensa reforma iniciada em 2019, com reabertura prevista para 7 de setembro 2022, em comemoração do bicentenário da Independência do Brasil.
“O material estava no pé de algumas árvores, isolado, sugerindo o uso do local para atividades religiosas”, explica o arqueólogo Renato Kipnis, diretor da empresa Scientia Consultoria e responsável pelo estudo, uma exigência do licenciamento ambiental para a reforma do museu. “O contexto dos artefatos não tem aspecto de descarte como lixo, geralmente ocorrendo em conjunto e com itens repetidos”, esclarece o pesquisador.
Museus danificados ou destruídos se reorganizam
Também foram encontrados fragmentos de uma garrafa com sete tiras de papel enroladas no gargalo, todas com a mesma assinatura em caligrafia antiga do nome Claudete Jahaqui ou Iahaqui. “Talvez fosse um ente, como parte de uma simpatia”, especula Kipnis, que só encontrou referência ao nome Iahaqui em um livro mexicano do século XVIII. Fragmentos de louças da fábrica Santa Catarina, em funcionamento do final do século XIX até a década de 1930, ajudam a definir a data dos achados.
Dentro do museu, no primeiro andar, no vão entre o piso de madeira e o contrapiso, foram encontrados um cachimbo de barro provavelmente importado dos Estados Unidos, um cálice pequeno de vidro e um chapéu de couro.
“Não são objetos que as pessoas costumam esquecer. Provavelmente foram largados lá pelos operários como uma forma de marcar presença no museu que ajudaram a construir”, sugere Kipnis.
Os itens serão incorporados ao acervo de arqueologia histórica do museu, criado pela arqueóloga Margarida Davinha Andreatta (1922-2015), pesquisadora que escavou sítios no centro de São Paulo em locais como o Anhangabaú e o Solar da Marquesa de Santos.
“Já foram feitas escavações internas no prédio, quando descobrimos ferramentas usadas na construção”, conta a historiadora Solange Ferraz de Lima, presidente da Comissão de Cultura e Extensão do museu. “Além do valor histórico, esses artefatos são a marca da profunda transformação pela qual a instituição está passando, uma vez que só foram descobertos por conta da reforma.”
Arqueologia de resgate
Há outro tipo de trabalho arqueológico que ocorre nos museus que passaram por incêndios. No Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ) estão sendo recuperados itens de 72 salas, cada uma com três camadas de acervo a serem escavadas: o térreo e dois andares que colapsaram com as chamas. Antes do incêndio, em 2018, o conjunto totalizava quase 13 mil metros quadrados (m2) de construção (ver edição especial de Pesquisa FAPESP sobre o incêndio do MN e a situação de crise em outros museus científicos). O resultado do resgate está guardado em 16 contêineres de 15 metros cúbicos (m3) lotados de material e em duas salas no anexo do museu. O processo foi descrito no livreto 500 dias de resgate.
Mudanças
Algumas peças estão inteiras, mas a maioria sofreu transformações variadas: foram fragmentadas, retorcidas ou mudaram de cor. “Só depois do inventário, que ainda demora mais alguns anos, será possível saber como é esse novo acervo forjado pelo fogo”, ressalta a paleontóloga Luciana Carvalho, da UFRJ, uma das coordenadoras do resgate. Depois disso, o processo de restauração deverá seguir por vários anos, talvez décadas.
“Quando o incidente aconteceu, procuramos na literatura publicações que nos ajudassem a lidar com o problema, mas não achamos nada”, conta Carvalho. Com exceção do contato com outras instituições que pegaram fogo, como o Museu de História Natural da Universidade de Lisboa, a equipe teve de aprender na prática.
Descobriram, por exemplo, que quando um andar desaba, a tendência é que o centro da sala, onde a sustentação das paredes é menor, caia primeiro. Conforme o piso amolece com o calor e verga pelo peso da laje, os móveis e itens expostos escorregam para o centro da sala e tudo desmorona sobre o que estiver em baixo. A equipe de resgate pretende publicar artigos técnicos com os protocolos de trabalho que adotaram e relatar o que aprenderam durante o resgaste das peças.
Balanço geral – Reconstruindo
Uma das maiores perdas do MN fazia parte da coleção paleontológica e estava no centro da sala, no primeiro andar, tendo recebido o peso do 2º e do 3º andar e do telhado. Eram os chamados espécimes-tipo, que servem como referência para reconhecer indivíduos de uma espécie. Havia exemplares fósseis de peixes, anfíbios, répteis, mamíferos e aves. “A coleção começou a ser formada no tempo do Império [1500-1822], com exemplares coletados nas primeiras expedições dos naturalistas. Era consultada por cientistas do mundo todo em estudos evolutivos ou de taxonomia”, lembra Carvalho, pesarosa.
A parte das coleções de paleontologia e geologia que ficavam no primeiro andar, dispostas no meio da sala, sofreram mais. Mesmo em armários de aço, o estrago foi grande. No entanto, um armário com fósseis de invertebrados que estava na lateral da sala resistiu praticamente ileso.
Acervos se transformam
A coleção de insetos desapareceu. O museu tinha 12 milhões de bichos coletados desde a época do Império, inclusive com espécies extintas. “Só sobrou uma casinha de vespa feita de barro”, conta Carvalho. No setor de linguística, foram destruídas todas as gravações de indígenas, com registros de línguas, lendas e histórias de tribos existentes e extintas.
As coleções mais preservadas foram as peças egípcias e a coleção de arqueologia clássica da Itália de Teresa Cristina, imperatriz que veio ao Brasil em 1843, casada por procuração com o imperador dom Pedro II. Boa parte das coleções de geologia também resistiu, incluindo as peças de mineralogia e petrografia, além de partes da coleção de paleontologia, como os esqueletos de vertebrados e fósseis de invertebrados e plantas. “Dada a proporção da tragédia, os resultados foram animadores”, observa Carvalho.
Em consequência do desastre, o MN construiu um novo campus para abrigar as coleções e os departamentos de pesquisa da instituição. “Em breve, o museu será exclusivo para exposições e atividades voltadas ao público, conforme previa o plano diretor da década de 1990”, comemora Carvalho.
Artigo científico
SILVA, A. L. et al. Depois do fogo: Ações e reações do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG ao incêndio na Reserva Técnica 1. Arquivos do Museu de História Natural e Jardim Botânico. v. 29, p. 160-74. 22 abr. 2020
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