Uma tartaruga diferentona
Uma tartaruga diferentona: Descrição de uma nova espécie de quelônio, antes vista como única, poderia ajudar no combate ao tráfico desses animais amazônicos.
Uma tartaruga diferentona
4/11/2020 :: Por Sarah Schmidt/R.Fapesp
“Quelônio de construção encrencada e de aspecto hediondo. Parece alimária duma fauna fantástica, criada por um deus brincalhão.” Assim o agrônomo e divulgador científico carioca Eurico Santos (1883-1968), na primeira metade do século XX, descreveu o matamatá (Chelus fimbriata), tartaruga de água doce típica das regiões central e norte da Amazônia.

Com um pescoço alongado e espesso, cabeça achatada e triangular e narinas que parecem um snorkel, o animal que ainda hoje os ribeirinhos brincam dizendo ter sido feito com partes de outros animais era até agora visto como uma espécie única, mas na verdade são duas.
Com base em análises de características genéticas e morfológicas e de distribuição geográfica, pesquisadores do Brasil, Colômbia, Alemanha e Reino Unido identificaram uma nova espécie, C. orinocensis.
A divisão dos matamatás
A descrição da nova espécie pode ter um papel importante no combate às exportações ilegais. “Podemos identificar a origem dos animais e mapear a rota do tráfico, o que contribui para o trabalho das autoridades locais”, diz a bióloga Susana Caballero, da Universidade dos Andes, na Colômbia, que participou do trabalho cujos resultados foram publicados em julho na revista Molecular Phylogenetics and Evolution.
Segundo ela, o rastreamento genômico facilita a devolução dos animais para os locais de onde foram retirados. Como têm uma aparência muito peculiar, os matamatás são muito cobiçados como bichos de estimação. Em abril deste ano, cerca de 2 mil matamatás que seriam exportados ilegalmente foram devolvidos aos seus hábitats, segundo o Ministério do Ambiente da Colômbia.
Diferenças
As duas espécies podem ter o mesmo tamanho, chegando a 50 centímetros de comprimento, mas vivem em territórios distintos. Descrita em 1783 pelo naturalista alemão Johann Schneider (1750-1822), C. fimbriata ocupa as bacias dos rios Amazonas, no Brasil, e Mahury, na Guiana Francesa, enquanto a nova espécie vive nas bacias do Orinoco, que corta a Colômbia e a Venezuela, e alto rio Negro, no Brasil.

As diferenças físicas são sutis. Chelus orinocensis tem um dorso mais claro e um plastrão (barriga) amarelado e sem pigmentos como a espécie original. “A carapaça dos matamatás do Orinoco e rio Negro é mais clara e mais oval que a dos animais da bacia do Amazonas, de carapaça escura e mais retangular”, explica o herpetólogo Richard Vogt, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), um dos autores do artigo que descreve a nova espécie.
Diferenças morfológicas já haviam sido relatadas, indicando a possibilidade de mais de uma espécie, agora confirmada por análises moleculares. Na Universidade dos Andes, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e no Museu de Zoologia de Senckenberg, na Alemanha, os pesquisadores sequenciaram genomas nucleares e mitocondriais de amostras de pele e de tecido muscular de 75 animais coletados em 17 locais da bacia Amazônica.
Estudos:
- VARGAS-RAMÍREZ, M. et al. Genomic analyses reveal two species of the matamata (Testudines: Chelidae: Chelus spp.) and clarify their phylogeography. Molecular Phylogenetics and Evolution. v. 148, 106823. jul. 2020.
- LASSO, C. A. et al. Conservación y tráfico de la tortuga matamata, Chelus fimbriata (Schneider, 1783) en Colombia: Un ejemplo del trabajo conjunto entre el Sistema Nacional Ambiental, ONG y academia. Biota Colombiana. v. 19, n. 1, p. 147-59. 2018.