Evolução do vírus
Evolução do vírus: Baixos índices de vacinação e falta de controle da circulação do Sars-CoV-2 favorecem o surgimento de variantes mais transmissíveis e letais.
Evolução do vírus
4/5/2021 :: Por Ricardo Zorzetto
Em um ano de pandemia, oficialmente decretada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo assistiu, atônito, ao adoecimento de 122 milhões de pessoas e à morte de ao menos 2,7 milhões – um terço delas ocorridas em apenas três países: Estados Unidos, Brasil e México.
Também pôde acompanhar, em tempo quase real e com um nível de detalhe talvez nunca visto antes, a evolução do patógeno que pôs de joelhos o sistema de saúde e afetou profundamente a economia de muitas nações. Desde que foi identificado no final de 2019 na cidade de Wuhan, na região central da China, o vírus Sars-CoV-2 sofreu uma série de transformações enquanto se espalhava pelo planeta.
À medida que infectava mais e mais pessoas e se replicava, acumulou pequenas modificações em seu material genético até que, em diferentes locais e momentos, já estava tão diferente do original que passou a ser considerado uma nova variante, que, ao prosperar e se disseminar, começa a ser chamada de linhagem – a linhagem agrupa exemplares com a mesma origem e muito semelhantes entre si, mas que podem possuir pequenas diferenças.
Genomas virais
Em 15 de março deste ano, a Nextstrain, uma ferramenta de visualização de genomas virais, listava nada menos do que 359 linhagens do novo coronavírus catalogadas desde dezembro de 2019 pelo sistema de classificação Pangolin. Entre tantas, três delas – uma surgida no Reino Unido, outra na África do Sul e uma terceira no Brasil – vêm causando especial preocupação por serem mais transmissíveis, poderem escapar à ação de anticorpos e, em alguns casos, provocarem doença mais grave do que as que circulavam anteriormente.
“Com as ferramentas genéticas de que dispomos atualmente, estamos assistindo à evolução desse patógeno ao mesmo tempo que ela ocorre”, afirma o virologista José Luiz Proença Módena, coordenador do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Sars-CoV-2
A primeira dessas variantes, que já se tornou uma linhagem e em março estava presente em 118 países, foi detectada em 14 de dezembro do ano passado no Reino Unido. Ela começou a circular em setembro no condado de Kent, no sudeste da Inglaterra, e rapidamente se espalhou. Apelidada inicialmente de variante de Kent ou britânica, tornou-se depois conhecida por um frio e sóbrio conjunto de letras e números (B.1.1.7) definido por uma nomenclatura proposta por pesquisadores da Austrália e do Reino Unido.
Essa sequência de números indica que ela é a sétima variante derivada da primeira que descende da linhagem B.1, uma das duas que surgiu originalmente em Wuhan – a outra, possivelmente mais antiga, é a A.1, que desapareceu em meados do ano passado.
Por causa de algumas alterações (mutações) que apresenta no genoma, a B.1.1.7 é transmitida ao menos duas vezes mais facilmente do que a linhagem que a originou e, ao que parece, também causa doença mais grave. No final de 2020 havia sinais de que ela poderia contribuir para o aumento das hospitalizações no Reino Unido e, agora, surgiram evidências de que está associada a um risco maior de morrer.
Em um estudo publicado em 15 de março na revista Nature, o epidemiologista Nicholas Davies e matemáticos e estatísticos da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres estimaram que uma pessoa infectada por essa variante tem, em média, uma probabilidade 61% maior de morrer do que alguém que contraiu alguma das linhagens que circulavam anteriormente. Eles chegaram a essa conclusão depois de analisar 4.945 óbitos ocorridos em um grupo de 1.146.534 britânicos que haviam testado positivo para o novo coronavírus.
Risco de morte
Dias antes, pesquisadores liderados pelo médico Robert Challen, da Universidade de Exeter, também no Reino Unido, apresentaram um resultado semelhante em artigo publicado em 10 de março na revista The BMJ. Ao comparar o total de mortes em um grupo de 54.906 britânicos infectados com a B.1.1.7 com os óbitos em número igual de pessoas que haviam contraído outra linhagem do vírus, verificaram que o primeiro grupo tinha um risco de morrer 64% maior do que o segundo.
Apesar de se disseminar facilmente na população humana, o Sars-CoV-2, na fase inicial da pandemia, parecia ser um vírus razoavelmente bem-comportado, que sofria modificações muito lentamente. A cada mês acumulava, em média, duas mutações na sequência de quase 30 mil bases nitrogenadas, as letras químicas que compõem seu genoma, uma espécie de manual de instruções para a fabricação de novas cópias do vírus. Só para se ter um parâmetro de comparação, o vírus da influenza A, causador de pandemias de gripe, evolui muito mais rapidamente: sofre uma mutação a cada vez que se multiplica, em questão de horas, ritmo que obriga a atualização anual da composição da vacina contra a gripe.
Variantes
Já no final de 2020, quando eram anunciados os resultados de eficácia das primeiras vacinas e ressurgia a esperança de que a pandemia estivesse se atenuando, o novo coronavírus voltou a surpreender. “Passaram a surgir variantes que apresentavam simultaneamente várias mutações e se disseminaram rapidamente, substituindo as anteriores”, lembra o virologista Fernando Spilki, pesquisador da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, e coordenador da Rede Nacional de ômicas de Covid-19, a Corona-ômica BR, que acompanha a circulação do vírus no país.
Uma dessas variantes é a que originou a linhagem B.1.1.7. Ela apresenta 23 mutações em relação à B.1, de Wuhan, das quais 17 provocam a troca de um aminoácido nas proteínas do vírus – as outras seis são inócuas (ver infográfico abaixo). Os aminoácidos são compostos químicos que, unidos uns aos outros em sequência, formam as proteínas. Em alguns casos, a substituição de um único aminoácido é suficiente para alterar a estrutura tridimensional da proteína e modificar seu funcionamento.
Estudos:
DAVIES, M. G. et al. Increased mortality in community-tested cases of SARS-CoV-2 lineage B.1.1.7. Nature. 15 mar. 2021.
CHALLEN, R. et al. Risk of mortality in patients infected with SARS-CoV-2 variant of concern 202012/1: matched cohort study. The BMJ. 10 mar. 2021.
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